João Modé | texto da exposição

INVISÍVEIS

O Projeto Respiração chega a sua 10ª edição com João Modé, cuja intervenção reafirma os fundamentos desta iniciativa. A ideia do Projeto Respiração surgiu do modelo da tribo de Levi, a única, entre as tribos de Israel, a quem era interditado o direito de posse do território. Como sua função era eminentemente espiritual – de conservar os fundamentos do povo judeu – não se poderia correr o risco da territorialização. A tribo se constituía com base na ideia de um descolamento do território geográfico e assim poder instaurar e preservar o território religioso e cultural, que não deveria se enraizar para não se desviar de seu objetivo. A arte, assim como todos os outros movimentos espirituais e cognitivos do homem, constitui-se a partir de um desprendimento do dado imediatamente material. Saber conservar essa dimensão é a sabedoria capaz de guiar nossas percepções e sensações do mundo, sem se misturar com ele.
O que se pretende com o Projeto Respiração, seguindo a sabedoria da tribo de Levi, é oferecer ao artista um território ocupado pela história da arte e pela história pessoal da colecionadora, a partir do qual ele poderá exercitar a sua liberdade de produzir descolamentos de sentido poético e visual da forte presença material que o circunda. João Modé nos oferece obras que trabalham no limite entre os mundos da presença material e imaterial que emana dos objetos da coleção; entre o tempo do objeto musealizado e o tempo em que esses objetos eram parte da vida cotidiana da casa.
Sua primeira atitude foi escolher um dos espaços da casa para habitar. Sentiu necessidade de conviver na Fundação não só como museu, mas também como casa. Desejou aproximar-se do tempo quando a casa era moradia. Escolheu ocupar um dos sótãos que está fora do circuito de visitação e integrá-lo ao circuito, criando um espaço de suspensão onde o visitante poderá conviver com um tempo menos acelerado e de contemplação. Nesse lugar, João Modé se permitiu conviver com a ambiência da casa para se deixar levar pelo seu imaginário e descobrir novas paisagens físicas e mentais. Trouxe de volta os sons, os discos que ela escutava; os aromas, seu perfume predileto (Joy de Jean Patou) e sua flor predileta (antúrio). Experimentou o que é viver na penumbra, já que Eva Klabin trocava o dia pela noite. Enfatizou a presença de objetos duplos – que percebeu se repetirem na coleção –, criando um jogo de espelhamento entre eles, para nos lembrar, através da ideia da imagem refletida, a presença imaterial da matéria.
A intervenção Invisíveis é uma ação sutil e solicita uma atenção cuidadosa do público para distinguir o limite entre dois mundos: o dos objetos tais como ordenados pela colecionadora e os objetos submetidos à ação do artista, que buscou deslocá-los do registro da apreciação para o registro das sensações. Ao reativar espaços, vivências e sensações que estão fora do olhar do visitante, João desmusealizou a casa, trazendo de volta o tempo, paralisado por Eva Klabin ao transformar sua residência em museu.
Interessa a João Modé provocar, através de sua ação, as pulsões invisíveis que escoam por entre as obras de arte e os objetos da coleção, reativando as lembranças que secretamente os envolvem e fazê-las aflorar no imaginário dos visitantes, para que eles também se sintam mobilizados afetivamente pelo espaço e pelo tempo da casa-museu. Sua proposta se insere com pertinência e exatidão à proposta curatorial que visa a artistas sensíveis à percepção de que a casa-museu de Eva Klabin, antes de ser museu, foi um território habitado; um território cheio de recordações, memórias, vivências, que criam um pano de fundo para as obras de arte. A circularidade de sentido entre a fisicalidade das obras e suas emanações sensíveis – como resultado impalpável e imaterial das relações estabelecidas por Eva Klabin – constitui o campo de proposição estética do trabalho de João Modé e do Projeto Respiração.

Marcio Doctors
Curador