Estados de Metáfora | texto da exposição

ESTADOS DE METÁFORA

A Fundação Eva Klabin poderia seguir por dois caminhos: o imobilismo da pedra ou a fluidez da metáfora.
O primeiro seria relacionar-se com a coleção deixada por Eva Klabin como um conjunto de obras de arte que traduzem uma pequena história da arte igual a outras existentes em diferentes museus do mundo. Seria não buscar a sua especificidade. Em outras palavras, seria entregar as obras de arte à sua condição puramente objetual – o confinamento e as certezas que a história da arte propicia - e silenciá-las no imobilismo da pedra.
O segundo seria pensar que, para além de uma coleção, ao constituir uma fundação cujo objetivo é preservar a casa na qual viveu, o que Eva Klabin nos diz, ou melhor, deixa implícito (lembrando Walter Benjamim) que ao adquirir as obras de arte, ela as retirou de circulação do mercado e as aprisionou em um “círculo mágico” que é o sentido que imprime à sua coleção. Nesse caso, essa idéia é enfatizada pelo fato de que as conservou em sua residência, que foi transformada em casa-museu. Isto é, além de musealizar sua coleção, a colecionadora musealizou sua vida. Ao interromper o fluxo do mercado, Eva Klabin estabelece uma nova fluidez, que é da metáfora. As obras de arte foram desterritorializadas do mercado de arte e reterritorializadas em uma casa-museu, cujo sentido é ser a metáfora da sua existência.
Essa operação evidencia que na realidade humana tudo é metafórico: são os descolamentos e os deslocamentos de sentidos que permitem sair do imobilismo da pedra em direção à fluidez da metáfora. É através da arte que melhor exercitamos a fluidez de deslocamentos que a realidade humana requer e na qual se reconhece. Foi essa consciência que permitiu criar o Projeto Respiração, que nessa sexta versão quer enfatizar explicitando esse aspecto: por isso, Estados de Metáfora.
Foram convidadas 3 artistas: Brigida Baltar, Claudia Bakker e Marta Jourdan. A proposta foi que cada uma escolhesse um dos espaços da casa-museu e que suas obras agissem como camadas de sentido a serem agregadas ao sentido inaugural estabelecido pela colecionadora. As artistas tornaram-se cúmplices de Eva Klabin e, ela, cúmplice das artistas na constituição de um território em que as obras da coleção e as das artistas se cruzam e intercambiam.
Brigida Baltar realiza a intervenção Passagem Secreta, usando pó de tijolo que é o material com o qual está trabalhando no momento e que foi retirado de sua antiga casa, cujas paredes foram sendo escavadas e os tijolos raspados para que pudesse recolher o pó. Esse material, impregnado da paciência silenciosa do ato de ir transformando tijolo em pó e da delicadeza de revelar aquilo que é mais profundo como uma das superfícies que constitui a espessura da realidade, que deu origem para que a imaginação da artista pudesse pintar continuidades (passagens secretas) entre os quadros e as paredes, ou interceptar com uma parede de pequenos tijolos o vão da porta entre o Hall Principal e a Sala Renascença, induzindo a idéia de que, para além do muro, existe um universo a ser descoberto, da mesma forma que descobrimos o mundo de Eva Klabin quando entramos na sua casa.
A delicadeza e a leveza da ação de Brigida Baltar de fazer revelar, na superfície da realidade, camadas da profundidade, cria uma comunicação subterrânea entre seu imaginário lúdico e o imaginário de Eva Klabin na constituição do cenário de sua existência.
Claudia Bakker faz extrações poéticas da percepção da colecionadora na formação de sua coleção. Cria, com Primavera Noturna, uma obra que evidencia os canais subterrâneos que conduziram a sensibilidade, a intuição e a percepção de Eva Klabin na formação de sua coleção. O transbordamento de tubos tentaculares que desce do lustre central e se espalha sobre a mesa e pelo chão forma uma espécie de jardim do pensamento ou o lugar de onde brotou o desejo de conviver com a história da arte. Os tubos são como extensões orgânicas da visão que buscam os fluxos de pensamento que conduziram o olhar da colecionadora, que foi formado pelos livros de sua biblioteca que a artista selecionou e espalhou sobre alguns móveis da sala.
A obra de Claudia Bakker é uma homenagem a esse momento mágico de introspecção em que, através dos livros, se convive com a história e a filosofia da arte, semeando o território da criação. Nesse ponto, artista e colecionadora se aproximam na constituição de uma intencionalidade única que é transformar o pensamento em realidade sensível e a realidade sensível em pensamento.
Marta Jourdan inventa, com Zona de Lançamento # 1, uma máquina do instante. Cria, na definição da própria artista, um sistema de transmissão do instante do real projetado. Gotas d’água reais ao pingarem sobre um retroprojetor são imediatamente projetadas sobre as paredes do quarto de dormir. As imagens ampliadas de gotas escorrem pelas paredes e pela cama e se espalham pelo chão. Não é possível conter a força da água que verte pelo ambiente.
Para além do dispositivo do instante, a idéia de que o estado líquido é incontrolável, que busca o seu caminho ou por transbordamento ou por corrosão, é o deslocamento que interessa a artista porque é igual ao mecanismo do sentido. Em outras palavras, o mundo do sentido também se impõe dessa maneira: ou é avassalador ou é insidioso.
A proposta do Projeto Respiração é estabelecer entre a Fundação Eva Klabin e os artistas convidados a intervir no espaço instaurado por ela, acréscimos de camadas de sentido ou revelação de sentidos subterrâneos. O exercício de deslocamento provocado por Brigida Baltar, Claudia Bakker e Marta Jourdan tem a mesma densidade da metáfora, provocando deslocamentos da visão habitual que temos dos espaços da casa-museu e da coleção; por isso, Estados de Metáfora.

Marcio Doctors
Curador