Há exatamente dez anos, em 2006, fiz uma entrevista
comentada com você para a exposição "Luz zul", que fizemos no Centro
Cultural Telemar, hoje Oi Futuro, em que faço a seguinte observação em
referência à sua resposta para a pergunta de como você via a questão do
insólito e do maravilhamento, que eu identificava na sua obra:
O insólito, o maravilhamento e a perplexidade são dimensões
que o tempo fragmentado da contemporaneidade tem engolido de forma tão
avassaladora que ainda talvez não tenhamos avaliado as consequências nefastas
que isso representará no futuro. Esses elementos são a fonte do poético, do
filosófico e da imaginação criadora da ciência. É uma dimensão sem a qual é
duro viver.
Passados dez anos, sou surpreendido pelo título que você deu
à sua intervenção na 21ª edição do Respiração: Insolitus. Você me fez perceber
que aquela exposição de 2006 mantém um elo com esta intervenção, que foi
subterraneamente se infiltrando ao longo do tempo, e manifestou-se através das
conversas que tivemos e que, de alguma maneira, conduziu sua intuição /
determinação primeira de transformar a mesa e as cadeiras da sala de jantar em
um objeto peludo preto; um objeto insólito ao criar a obra Mutante l. Essa
ideia foi tomando corpo e permitiu que eu percebesse com mais contundência o
lado negro presente no conjunto de sua obra; lembro aqui dos trabalhos com
sombras como contraponto poético metafórico aos trabalhos que lidam com a luz,
e como identificação da ausência que todo corpo projeta para além de si.
No texto do catálogo de 2006, fiz referência a uma parábola
judaica que fala dos dois fogos que escreveram as pedras da lei: o fogo negro,
que desenhou as letras tal como as lemos, e o fogo branco, que criou o espaço
entre as letras que nos permite lê-las. E afirmava, então, que hoje lemos o
fogo negro e que chegaria o dia em que conseguiríamos ler o fogo branco e que
nossa percepção da realidade mudaria integralmente. Da mesma forma penso que a
sombra, no conjunto de sua obra, pode ser percebida como uma presença imaterial
que se projeta para além do corpo material, como também uma presença que
projeta o vazio subterrâneo desse mesmo corpo.
Para mim Insolitus pode ser lido de duas maneiras, como um
paradoxo que nos desafia, tal como os fogos e a sombra: como explicitação do
vazio subterrâneo de nossa sociedade atual, sem rumo, que faz aflorar as
pulsões negativas de um mundo incerto e inseguro, e como um alento de esperança
- um chamamento - que nos diz: surpreendam-se com o insólito! A
estranheza e a perplexidade que ele desencadeia são uma chamada à esperança.
Fiquem atentos e tomem cuidado com as forças insidiosas que nossas opções estão
nos levando e teremos de encontrar saídas porque o incômodo e o desconforto
atuais são grandes.
Longe de mim querer dar uma roupagem político-panfletária à
sua intervenção, sei que essa não é e nunca foi sua intenção, ao contrário,
vejo nela uma dimensão espiritual. Generosa. Mundus admirabilis é uma
infestação de insetos gigantes que tomam conta da fachada da casa-museu Eva
Klabin, assim como Dark swamp (nest), na Sala Renascença, em que um ovo negro
de 180 cm de altura brota de um pântano de crocodilos, produzindo uma percepção
de maravilhamento insólito que nos deixa perplexos e reflexivos sobre o que
será gerado dali. Tudo isso tendo como fundo o som de helicópteros e mosquitos,
vindo da obra Fábula ll, no alto da escada do hall principal, como referência
perturbadora ao mundo dos insetos e ao filme de Francis Ford Coppola
(Apocalypse now), cujas últimas palavras são: "O Horror. O Horror. O
Horror". Você cria, dessa maneira, uma paisagem sonora que imanta o espaço
da residência dando coerência poética à sua intervenção.
Poder conservar a reflexão neste momento de incertezas que o
mundo atravessa, perdidos que estamos entre um território conhecido, mas que
sabemos sem futuro, e um desejo de algo novo, mas inseguros pelo desconhecido;
permitir-nos interromper o fluxo do cotidiano e a partir de sua intervenção
refletir sobre nossos descaminhos é, para mim, esperança.
Esperança no sentido de que estamos numa travessia entre
dois mundos, entre duas escritas, entre dois fogos e teremos de optar sem medo:
apegamo-nos ao conhecido e repetimos os mesmos erros do passado ou apegamo-nos
à esperança, mesmo sem saber ao certo para onde ela nos levará, e arriscamos na
certeza de que não mais queremos o que aí está e que o desconhecido traçará um
novo caminho. Ansiamos por uma mudança espiritual: Insolitus nos traz a
crueza de uma realidade substantiva, que sua obra é capaz, ao explicitar,
materializando-se na superfície do mundo, as angústias de nossa sociedade
atual.
Só a arte e a filosofia são capazes de tal feito porque têm
os meios espirituais para tal; não temem o desconhecido e não têm o receio de
colocar o dedo na ferida. Espero que as pessoas que entrem em contato com mais
essa intervenção no acervo da casa-museu Eva Klabin percebam que o que está
sendo proposto desde o início pelo projeto curatorial e que você, Regina, soube
expressar com tanta propriedade, ao radicalizar a ideia de intervenção da
proposta original do Respiração, é a necessidade de desestabilizar para
encontrar novo equilíbrio. Ao desestabilizar os códigos de uma residência, em
que a tranquilidade doméstica é perturbada pelo seu imaginário, você cria uma metáfora
contundente dos tempos atuais.
Querida Regina, só os artistas são capazes de antever o
futuro, não que isso seja um mérito em si, já que o futuro chegará
independentemente do que quer que seja, mas ao trazerem consigo essa potência
conservam a única certeza possível que é a clareza da constatação. O que quero
dizer com isso? É que o corpo do artista é uma espécie de veículo dos tempos se
metamorfoseando, que se expressa por meio das obras de arte. A obra é
mais importante do que o artista; ela é um raio X do tempo de sua atualidade; é
capaz de criar pelas sensações de identificação/empatia (Worringer) uma
percepção de evidência, que é um bloco de sensações (Deleuze), deixando o
mistério de cada época mais transparente.